Muvuca: a ciência – e arte - de plantar florestas

Em meio a tantas notícias sobre a crise  climática , existe no Brasil - mais precisamente no interior do estado do Mato Grosso, região que depois de um sobrevôo observa-se muitas fazendas de produção de soja, - uma iniciativa de restauração ecológica na região da cabeçeira do Rio Xingu que mostra que é possível conservar e produzir ao mesmo tempo. 

Vamos começar pelo princípio: O que é restauração ecológica e por que ela é importante?

A restauração ecológica é, de forma simples,  o trabalho de regenerar ecossistemas de áreas que foram degradadas e dar condições para que a natureza retome o seu curso. Na região de floresta Amazônica, por exemplo, a restauração de áreas desmatadas é uma solução. Esse processo é fundamental porque as florestas são o meio mais eficiente e econômico de remover e armazenar grandes quantidades de dióxido de carbono (CO2), principal causador do aquecimento do clima. Restaurar é fundamental para garantir que o planeta continue proporcionando o ambiente ideal para a vida humana. 

Quando se fala em restauração, é comum pensar no plantio de mudas de árvores, mas na região do Xingu, o Instituto Socioambiental (ISA), com o apoio da Conservação Internacional e outros diversos parceiros estão usando a técnica chamada muvuca para fazer a floresta ficar em pé novamente. Do ponto de vista econômico, essa técnica leva vantagem sobre as mudas porque exige menos manutenção e monitoramento além de remunerar uma cadeia produtiva mais densa. Ambientalmente, a muvuca se destaca porque consegue uma cobertura florestal maior, mais rápida e mais parecida com o crescimento orgânico da floresta.

Mas o que é muvuca? 

No bom português, uma muvuca é uma aglomeração de pessoas, uma mistura, um agito. É exatamente isso que o ISA está fazendo, mas, junto às pessoas, imagine sementes. A muvuca é um coquetel de sementes que são plantadas de uma só vez. Milho, feijão, urucum, caju, marupá, angico, aroeira-verdadeira, jerivá, ipês, copaíba, mulungu, xixá, buriti, bacaba, baru, açaí e angelim são algumas das sementes que viram floresta no Xingu. Uma muvuca tem cerca de 90 quilos de sementes de até 120 espécies para cada hectare que será plantado. 

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Legenda: Até 120 espécies de plantas nativas da região onde será feita a restauração são usadas na mistura © Inaê Brandão

A arte de regenerar ecossistemas tem como pano de fundo uma ciência complexa que ao longo dos anos foi aprimorada. A seleção das sementes, por exemplo, é feita sempre na mesma vegetação e região onde serão plantadas para evitar o surgimento de espécies invasoras. Na região do Xingu, onde, mais ao sul, nas cabeceiras e nascentes do rio Xingu, se encontram ecossistemas amazônico e de cerrado, a mistura é preparada com as espécies nativas de cada uma delas. Desde a seleção das espécies, a proporção de cada uma na mistura, o preparo da terra, a época certa para a coleta das semente e para o plantio, as formas adequadas de semear, tudo isso foi sendo descoberto ao longo de 12 anos de pesquisas e experimentos. As informações coletadas viraram um Guia da Muvuca organizado pelo ISA e pela Rede de Sementes do Xingu.

Após o plantio, é possível observar em apenas uma semana os primeiros brotos surgindo da terra. Um ano depois, um labirinto verde toma conta da área. Ele é formado por árvores pioneiras, que são espécies que fazem sombra e garantem que as demais plantas, as secundárias, vão germinar e se desenvolver. Quatro a cinco anos depois, o cenário muda e as árvores de crescimento rápido começam a morrer e a área começa a ganhar mais cara de florestas, com árvores mais altas que possuem ciclos longos de vida. Com alguns anos do plantio, a floresta começa a receber os animais que voltam aos locais e também trazem novas espécies nativas. O monitoramento para acompanhar a evolução das áreas é feito anualmente e por até três anos após o plantio.

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Legenda: O plantio da muvuca ocorre em áreas o preparo adequado do solo e pode ser feito de forma manual ou mecanizado © Inaê Brandão

E de onde vem essa quantidade enorme de sementes?

A quantidade é realmente grande. É comum encontrar misturas com até uma tonelada – isso mesmo, uma tonelada de sementes. Essa vida em potencial vem das mãos habilidosas dos coletores e coletoras da Rede de Sementes do Xingu. A rede é composta por agricultores familiares, indígenas e pessoas que vivem em áreas urbanas. Formada em sua maioria por mulheres, ela é uma fonte extra de renda para as famílias que vivem no campo. 

Na rede, o conhecimento popular transmitido de geração para geração se une ao científico. Na época de coleta de sementes, os 568 coletores, destes 62% mulheres,e seus familiares saem pelas matas, estradas e fazendas juntando sementes ao pé das árvores. Aos 78 anos, Dona Odete Barbosa é uma das fundadoras do grupo de coleta do projeto de assentamento Macife, no município de Bom Jesus do Araguaia, MT. O trabalho, segundo ela, transformou a comunidade e deixou as famílias mais unida. Juventude e felicidade são os sentimentos que ela associa a coleta. “É emocionante pensar que você está fazendo uma coisa que está ajudando o mundo”. 

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Legenda: Aos 78 anos, Dona Odete é uma das coletoras da Rede de Sementes do Xingu. Sempre com um sorriso no rosto, ela conta orgulhosa sobres os impactos positivos da rede no PA e sobre o orgulho de fazer parte do projeto © Inaê Brandão

Muvuca de sementes, muvuca de gente

O sucesso do projeto só é possível graças a diversidade de atores envolvidos nele. Além do ISA e da Rede de Sementes do Xingu, dezenas de organizações são parceiras e apoiadoras, entre eles a Conservação Internacional, o Rock in Rio, por meio da iniciativa Amazonia Live, entre outras empresas. Outro ator fundamental para o êxito da restauração é o produtor rural, que caminha junto às soluções baseadas na natureza e se engaja na restauração florestal, trabalhando junto com toda essa muvuca de gente para que parte de suas áreas voltem a virar florestas.

A restauração está sendo realizada em Áreas de Preservação Permanente (APPs) e a maioria delas está  em grandes fazendas de soja na região. As APPs devem ser cobertas por vegetação nativa e tem a finalidade de preservar recursos hídricos, mas em muitos casos, acabaram sendo desmatadas. 

Uri Correia, de 32 anos, hoje ajuda a construir as florestas que no passado derrubou. Ele trabalha em uma das fazendas que está restaurando APPs. “Tinha 12 anos e vinha trabalhar com meu pai na fazenda, usava motosserra para derrubar as árvores. Achava isso bonito porque pensava que era desenvolver a área, produzir. Eu ajudei a derrubar tudo e hoje estou carregando sementes para ajudar a plantar. Mostro para a minha filha o que hoje ajudo a recuperar e como vai ser importante para o futuro dela e dos meus netos”. 

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Legenda: Uri olha e fala com orgulho dos ecossistemas que hoje está ajudando a reconstruir na fazenda em que trabalha © Inaê Brandão

A melhora na qualidade de água, o crescimento da biodiversidade, nascentes de rio que retomam o curso inicial e inclusive a melhoria da produção agrícola estão entre os resultados encontrados. Artemísia Moita, gerente de sustentabilidade da Fazenda Rancho 60, que está à frente de todo esse trabalho de restauração nas áreas, resume o valor que tem o meio ambiente saudável. “Tudo de valor que temos vem da terra e estamos tratando ela tão mal. A floresta em pé é a nossa vida, é a nossa sobrevivência, e eu não sei quanto vale uma vida. Isso não tem preço”. A Rancho 60 faz parte do grupo de produtores da região que buscam soluções sustentáveis para a agricultura. Antes tentando recuperar as áreas com mudas, foi com a muvuca que eles encontraram um jeito mais eficiente de regenerar as APPs.

Com a muvuca, o ISA já garantiu o plantio de 1,8 milhão de árvores que estão se transformando em floresta novamente e nos mostram que existem soluções possíveis e eficientes para unir a muvuca de interesses, prioridades e diversidade que existem no nosso planeta. 

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Legenda: Muvuca de sementes e de gente são a chave para o sucesso do projeto desenvolvido pelo ISA e parceiros no Xingu © Inaê Brandão